sábado, 21 de abril de 2007

Casca

Essa semana, presenciei um fato que me fez pensar o que é nossa sociedade, senão uma grande peça de teatro, onde todos, sem exceção, procuram representar para si e principalmente para os outros um personagem que lhes seja conveniente. Passando em uma das travessas da Avenida Paulista, vi um executivo doando algumas moedinhas para uma senhora e duas menininhas que estavam pedindo nas ruas. Ao perceber que o executivo doaria, ainda que pouco, alguma quantia, uma das garotas não resistiu e levantou-se, correndo para perto dele, com as mãos posicionadas como as de quem vai receber a hóstia, antes do engravatado completar a sua boa ação. Até aí, seria mais uma cena comum, se não viesse o sermão da mãe: "Filha, você não pode fazer isso! Quando alguém vier entregar o dinheiro, você tem que esperar sentada, não dá para sair correndo assim!!"

Nesse mundo classe média do qual fazemos parte, como bem ilustrou o Paulo com a música "Classe Média", estamos acostumados com esse jogo de aparências, mas realmente me espantou a consciência da senhora, de que ela também tem que tratar de sua "casca", caso contrário a sua stituação poderia piorar (na hora, fiquei revoltado, mas depois percebi que a sua atitude era necessária dentro do triste contexto em que está situada).

Para ilustrar um pouco como vivemos neste mundo de aparências e ilusões cultivadas por nós mesmos, eis abaixo uma música de Tiago Bettencourt, do grupo português Toranja (que se apresentou no Brasil em junho do ano passado, abrindo os shows do Los Hermanos), chamada "Casca":

Continuamos a tratar da casca
Continuamos a moldar a casca
Continuamos a remar de costas
E a provar águas quase mortas
A viver ruas já pisadas
A levar pedras já usadas
Num saco meio roto
Num saco meio morto

Tentamos não manchar a casca
P'ra fazer brilhar a casca
Tentamos não parar de costas
Tentamos não falhar respostas
Que nunca nos vejam de fora!!
É para nós que o mundo adora
Passos de dança no chão
É para nós que os olhos olham.

Casca é o tempo que dói,
a janela fechada que estilhaça quando se olha p'ra trás...
Vento é o que bate na cara
É só largar a casca,
Ninguém olha pr'a trás.

Tentamos disfarçar demónios
Por medo desviamos olhos
Por fuga apagamos fogos
Por escudos renascemos novos
Sem rasto esquecemos lábios
Altivos, rastejamos, sábios
Cada vez mais fundo
No buraco do mundo

Com força agarra-se a casca
Que é só o que nos resta
Que o mastro derreteu
Mais, tudo encolheu
Quisemos testar barreiras
E construímos teias
Difíceis de romper
Aqui ficamos presos na...

Casca é tempo que dói
É janela fechada que estilhaça quando se olha para trás..
Vento é o que bate na cara
É só largar a casca!!
Ninguém olha para trás!

3 comentários:

Anônimo disse...

Não somente acontece para o necessitado, que representa, a fim de conseguir algo, como também para o engravatado. É claro que não falo deste caso, pois seria injustiça generalizar. Mas quantas pessoas fazem essas ações de coração? Ou quantas fazem sem ser uma troca de favores? A política principalmente é o maior teatro, pois, em troca de uma "pseudo-esmola" (O nosso voto) os políticos então fazem um verdadeiro espetáculo, sendo que estão ali, para trabalhar por todo o povo, e não pelos interesses próprios.

Talvez o dia em que políticos sérios (Que de fato existem) forem a grande maioria, o Brasil passará a andar com as próprias pernas e não dependerá mais de esmolas.

Parabéns pelo blog! Excelente!

Pedro Zambarda disse...

São pequenos atos que representam um altruísmo mentiroso, um egocentrismo escondido. São falhas no ato que deveria ser descompromissado, voluntário.

Isso é a institucionalização da pobreza.

Marília Passos disse...

Não comentarei sobre o fato que o fez lembrar da música, o assunto é muito sensível e complicado, merece uma discussão mais a fundo.
Mas comento sobre a música, que devo admitir, soa como uma tapa na cara. Usamos cascas, usamos máscaras para nos protegermos de nós mesmos e de nossos semelhantes, nossos irmãos, tão cheios de defeitos quanto nós.